PUBLICIDADE

Superar: privilégio dos anormais

Claiton Cavalcante Membro da Academia Mato-Grossense de Ciências Contábeis.
PUBLICIDADE
PUBLICIDADE

Em 1998, um menino, à época, com 13 anos de idade apaixonado por futebol viu pela televisão um horror quando a seleção de Zidane massacrou o time brasileiro.

Naquele mesmo ano, de forma indireta, o pré-adolescente fez valer a imortal crônica futebolística de Nelson Rodrigues, quando escreveu que: “O que procuramos no futebol é o drama, é a tragédia, é o horror, é a compaixão”.

O menino que sonhava em ser jogador de futebol e já tinha visto o horror da “surra” francesa por 3 x 0, vivenciou o drama de largar esse esporte por ter sido picado por uma cobra jararaca, que além de quase ter posto fim a sua prelúdica vida o deixou com os movimentos limitados no pé e na perna esquerda.

O pai do menino até tentou incentivá-lo a retornar aos campos de futebol, para isso criou um time onde levava o promissor atleta a tiracolo. Quase deu certo o retorno aos campos de terra.

Mas ele, o menino, teimava em seguir a crônica rodriguiana. Coxo da perna, agora sofreu acidente de trabalho e perdeu a visão. Após várias cirurgias sem sucesso, só restou aos oftalmologistas realizar a extração do globo ocular esquerdo. Hoje usa prótese para fins estéticos.

O genitor era persistente e mesmo com o filho coxo de uma perna e cego de um olho, ambos do lado esquerdo, não deixou a “bola cair” e apresentou o menino ao mundo do atletismo. No início dessa nova empreitada ainda jogava bola e corria 15 quilômetros diariamente.

Não demorou muito e graças a persistência do agora atleta, os resultados nas corridas de rua começaram a surgir. Pois, ainda no ano de 2006 competindo com atletas sem nenhum tipo de limitação física alcançou a 38ª posição na classificação geral da Corrida de Reis, realizada em Cuiabá.

A partir daí e com a orientação profissional de um renomado técnico de atletismo que o viu – mesmo com a deficiência em um dos membros inferiores – desbancar quatro dos seus atletas durante uma corrida de rua no interior do Estado, o antes menino apaixonado pelo futebol tornou-se atleta paralímpico profissional.

Ao ingressar na escola de atletismo os resultados positivos foram tão rápidos quanto suas passadas e em menos de dois anos de treinamento o atleta que já era adulto, ganhou pela primeira vez a Corrida de Reis, em 2008.

E para a surpresa de muitos, o primeiro lugar no pódio dessa mesma corrida se repetiu durante outras cinco corridas consecutivas, ou seja, entre os anos de 2009 e 2013, tornou-se personagem habitual a frequentar o ponto mais alto da premiação.

Com esse currículo de seis vitórias seguidas em uma das maiores corrida de rua do Brasil, o atleta foi convidado a participar do Circuito Loterias Caixa de Atletismo, realizado pelo Comitê Paralímpico Brasileiro.

Nosso atleta aceitou o desafio, cujo objetivo era alcançar o índice para participar da Paralimpíada do Rio 2016 e como já não era mais surpresa para ninguém, o desportista durante o Circuito Loterias Caixa bateu recordes brasileiro nos 5 e 10 mil metros, resultados que o credenciou a integrar a Seleção Brasileira de atletismo paralímpico.

Os atletas paralímpicos são divididos em grupos, que disputam entre si, de acordo com o grau de deficiência constatado pela classificação funcional. As classes são definidas pelo Comitê Paralímpico Internacional, que no caso das corridas de rua e pista, possui a classe “T”. O nosso atleta enquadra-se nas classes T11 a T13 (Deficiências visuais) e T42 a T44 (Deficiência nos membros inferiores sem a utilização de prótese).

No entanto, o pensamento rodriguiano roubou a cena mais uma vez. Não bastasse coxo e cego de um olho, no final do ano de 2013 o atleta foi diagnosticado com um tumor maligno na região do tórax.

Em decorrência do tratamento, mais um perrengue, apenas um dos rins funciona com capacidade plena, o outro está capenga idêntico ao membro inferior. Foi quase um ano de tratamento, tempo suficiente para retirá-lo da Seleção Brasileira e consequente da Paralimpíada do Rio.

Após tanta tragédia, são poucos os destemidos que seguiriam em busca de vitória. Nosso atleta é um desses. Pois não deixou se abater pelos desajustes que a vida lhe impôs e seguiu correndo.

Correu e treinou incansavelmente entre os anos de 2015 e 2016, para no ano seguinte ser novamente pela sétima vez campeão da Corrida de Reis.

E por falar em sete, no decorrer de todo esse período atrelado aos obstáculos que surgiram em seu caminho, nosso atleta seguiu à risca uma das sete “virtudes divinas”, que é a paciência.

Pois somente os grandes campeões são capazes de manter o controle emocional, sem perder a calma mesmo após enfrentar dificuldades de todos os prismas tendo sempre a certeza de que quando cruzar a linha de chegada terá deixado para trás todas as intempéries, seja mundana ou não.

E nesse ínterim, entre 2017 e os dias que seguem, nosso atleta tornou-se marido, pai de uma linda menina que também corre pra dedéu e voltou a treinar em alto nível com o apoio daquele antigo técnico.

Resultado disso tudo: Em 2024, após correção, foi declarado vencedor pela oitava vez da Corrida de Reis. Desfecho que reascende a esperança de voltar a integrar a Seleção Brasileira de atletismo paralímpico para quem sabe disputar os Jogos de Paris 2024.

Parabéns, Allender dos Anjos Souza!

COMPARTILHAR

PUBLICIDADE
PUBLICIDADE

Mais notícias

Conviver com a violência

Todo dia recebemos notícias de um conhecido ou amigo...

A sustentabilidade registrada

Em ano de COP29, em Baku e G20, no...

O caso de um pescador…

Atuando em processos em segunda instância no Tribunal de...

Cada um ao seu tempo

O tempo é apenas um meio de nos prepararmos,...