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The Leftovers*

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O suicídio é uma epidemia, relativamente silenciosa. A OMS informa que mata mais do que o HIV, e em estudo inédito nos revela que há um suicídio no mundo a cada 40 segundos. Não sou especialista na área apesar de me aventurar a escrever este artigo. Médicos psiquiatras, psicólogos, neurologistas e até nutrólogos são os profissionais mais habilitados a informar com precisão técnica o que a ciência já sabe deste flagelo dos dias atuais.

O que tenho é a experiência de ter testemunhado isso ocorrer.  Creio que, com esses índices, parando para pensar, todos conhecem casos de pessoas próximas que cometeram suicídio. E do que vivi e aprendi, é que peço licença para compartilhar. Quem sabe compartilhar a experiência de quem restou, possa ajudar. E, mesmo, compartilho, pois é preciso falar deste assunto e não escondê-lo para debaixo do tapete. Está acontecendo, muito perto de todos nós.

Da primeira vez que um suicídio aconteceu com alguém próximo, foi com um familiar. Um primo, num ato que pareceu a uma criança (que eu era) um desatino. Ciúme e até estar submetido a pressão da sociedade machista o levaram ao extremo, imediatamente após um divórcio. Tantos anos atrás, meus tios fizeram  de tudo para que os detalhes não ganhassem os jornais.

Na segunda vez, e bastante recentemente, vi minha melhor amiga de uma vida inteira ser consumida pela depressão. Família, amigos, igreja – ela era uma pessoa de muita fé – mas nada a atingia o suficiente, para fazer voltar a crer na vida. Uma irmã, das brincadeiras e aprendizados da infância, adolescência e faculdade, começa a definhar diante dos olhos e nada do que a medicina tem para oferecer sequer chega a dar esperança de mudança de rota. Fiz promessas de estar perto. Vi os olhos brilharem durante conversas reacendendo a alegria que já estivera presente. E, fundamentalmente, nunca acreditei – por ser impossível acreditar que alguém tão essencial um dia se vá – que o pior fosse acontecer. Aconteceu.

Um ano depois, vi novamente. Tudo que li e pesquisei para ajudar minha melhor amiga, foi o substrato que me ajudou a enxergar que mais alguém tão querido trilhava este caminho. O sinal de alerta acendeu ao ouvir frases desejando estar livre do que existia na própria vida. A confissão entrecortada e negada imediatamente, dizendo que morrer lhe passava pela cabeça. A mudança dos gestos, a construção de uma versão da realidade na qual a única conclusão possível seria que sua ausência era o melhor para os que amava. E o fim.

A tristeza de perder amigos amados, como naquela poesia que tanto circula, muda a gente. O título do artigo, “The Leftovers”, é de uma série de TV americana, de realismo fantástico que propõe uma realidade paralela: em um determinado dia, na mesma hora, milhões de pessoas desaparecem da face da terra. Sem explicação. Não é sequestro, não é morte, não há corpos, nada. Somem diante dos olhos. A série mostra a vida daqueles que ficaram, e suas tentativas de descobrir o que de fato ocorreu e sobreviver à tristeza. “Leftovers” é também, a forma como se referem à comida que sobrou. As sobras.

O enredo da série é um pouco do sentimento que fica, quando um ente querido se vai após perder a batalha contra um flagelo mental. Não sou capaz de compreender a perda da vontade de viver. Nos três casos que sofri, o coração partido só se recorda que eram três pessoas incapazes de fazer o mal e  alegres. Meu primo gostava de praticar esportes e dançar tango, minha melhor amiga tinha a gargalhada mais alegre de todas, e sempre presente. E minha querida amiga que faleceu ano passado, passava a vida a agregar grupos, fazer amigos tornarem-se amigos uns dos outros. Pessoas amadas pelas famílias.

Outra coisa que o mundo moderno trouxe, é o senso comum invadindo o momento de luto, com tantas opiniões nos jornais e redes sociais. Desconhecidos apontando o dedo, após a morte e falando em falta de amor, ou falta de Deus. Comentários que só posso concluir que nasçam da ignorância, de não ter o conhecimento técnico (dos médicos e psicólogos) e nem o conhecimento trazido pela vida àqueles que já tentaram auxiliar uma pessoa nessas condições. Nos três casos que presenciei, a busca – e paz – que sentiam cada um com sua fé religiosa, por si só não resolveu. Mas também não era apagado, como muitos acreditam, no conforto de seus sofás.

Uma doença física é melhor percebida pelo doente, pela família, por quem está em volta. O luto após um suicídio é uma dor com características diferentes. Resta uma grande pergunta não respondida, naqueles que ficam. E a preocupação não cessa. Anos depois, ainda me pego na lembrança dos momentos felizes, e dos momentos de dor. E pensando no que poderia ter sido feito.

O que posso dizer, para todos, pois não sabemos quem pode passar por isso, é que teria multiplicado a atenção por dez, cem, mil vezes. É preciso estar atento e esquecer o senso-comum. Ao perceber amigos doentes, meu primeiro passo foi buscar a orientação em artigos e grupos. E falei com profissionais da área pedindo orientação sobre o que fazer para auxiliar – e descobri que é sim, possível ajudar. O suicida fala em morrer, há sites de apoio e campanhas de esclarecimento sobre os elementos comuns na forma como se comportam.  A pessoa com esse perfil dá sinais.

Diante dos sinais, se você está por perto, não pense que é exagero agir. Aja. Fale. Pode ser que os familiares da pessoa doente sejam abertos a ouvir. Fale, avise o responsável (pai, mãe, marido, esposa, irmãos). Há situações em que os familiares não são abertos para ouvir. Procure mesmo assim, comunique. Comunique ao médico responsável. Ele não convive com a pessoa 24 horas, e só conta com o que ouve na consulta.

Mesmo estando presente, mesmo estando atento, saiba que a batalha é interna e só pode ser vencida pela própria pessoa. E que todos os seus esforços serão considerados insuficientes por você mesmo, caso perca alguém querido. Tente ajudar mesmo assim. Testemunhei o amor que cada uma dessas pessoas tinha por seus familiares, mesmo no auge da doença. Colocando-me a disposição, ouvi frases de preocupação com os pais, com os filhos. E testemunhei o que esta doença faz com o cérebro e a capacidade de raciocínio de pessoas amorosas: a ilusão de que sua morte é melhor para os que ficam. Um pensamento fixo que substituiu a realidade.

Depressão é uma doença grave, séria, que não dá tréguas aos que dela padecem. A quem teve um ente querido perdido, minha solidariedade, a gente descobre e redescobre o que tem valor na vida. E o valor da própria vida.  Aos que pensam que dar fim à própria vida pode ser um caminho, um apelo amoroso para que lute contra esse pensamento equivocado, procure e acredite no poder da ajuda especializada. A morte não é solução. É um vazio que nunca pode ser preenchido, pela perda da pessoa única e especial que cada um é.

Glaucia Amaral é Procuradora do Estado em Mato Grosso e presidente da Associação dos Procuradores do Estado de Mato Grosso (Apromat).

 

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