A lei 12.850/2013, que definiu o conceito de Organização Criminosa, dispôs sobre investigação criminal e meios de obtenção de provas, trazendo específico procedimento a ser observado nos acordos de colaboração premiada firmados entre o Ministério Público e o investigado, ou entre este e o delegado de polícia.
Realizado o acordo, o mesmo é submetido ao Juiz competente para homologação, sendo que este, conforme autorização da lei de regência, poderá ouvir o colaborador, para verificar a regularidade, legalidade e voluntariedade do ajuste.
O presente artigo visa abordar os limites impostos ao Juiz no momento da oitiva do colaborador, a profundidade de sua atuação frente àquele que se propôs a ser um meio de obtenção de provas[2], segundo o ordenamento jurídico vigente.
A Constituição da República Federativa do Brasil fez uma clara opção processual penal pelo sistema acusatório, onde as tarefas de investigar, processar e julgar estão nas mãos de diferentes atores, garantindo-se o devido processo legal e o julgamento justo e imparcial.
O sistema acusatório tem como característica marcante a ausência do Juiz na fase de investigação e acusação, bem como busca promover a paridade de armas entre acusação e defesa, garantindo neutralidade para o julgamento.
A presente assertiva encontra forte respaldo na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que claramente limitou a participação ativa do Juiz na investigação, podendo ser apontado, a título de exemplo, a vinculação do pedido de arquivamento efetuado pelo Procurador-Geral[3], a impossibilidade de o Juiz determinar denúncias e aditamentos e a impossibilidade do Juiz realizar diligências investigatórias por conta própria[4].
Qualquer ato do magistrado que implique uma investigação direta, viola frontalmente o princípio acusatório, fazendo com que, inevitavelmente, fique impedido de conduzir a ação penal.
A materialização do sistema acusatório se encontra no Art. 129 I e VIII da Constituição Federal[5], impondo ao Ministério Público a função de processar e requisitar as diligências investigatórias pertinentes, e, ao Judiciário, julgar, mantendo-se, pois, inerte e distante da busca pela prova penal, sob pena de se contaminar pela parcialidade.
Sendo assim, como deve se portar o Juiz na audiência para oitiva do colaborador, admitida pela lei para fim de homologação do acordo? A resposta se extrai do próprio texto da lei e da Constituição Federal, à luz do sistema acusatório.
Dispõe a lei 12.850/2013:
Art. 4o O juiz poderá, a requerimento das partes, conceder o perdão judicial, reduzir em até 2/3 (dois terços) a pena privativa de liberdade ou substituí-la por restritiva de direitos daquele que tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e com o processo criminal, desde que dessa colaboração advenha um ou mais dos seguintes resultados:
§ 6o O juiz não participará das negociações realizadas entre as partes para a formalização do acordo de colaboração, que ocorrerá entre o delegado de polícia, o investigado e o defensor, com a manifestação do Ministério Público, ou, conforme o caso, entre o Ministério Público e o investigado ou acusado e seu defensor.
§ 7o Realizado o acordo na forma do § 6o, o respectivo termo, acompanhado das declarações do colaborador e de cópia da investigação, será remetido ao juiz para homologação, o qual deverá verificar sua regularidade, legalidade e voluntariedade, podendo para este fim, sigilosamente, ouvir o colaborador, na presença de seu defensor.
Conforme se vê da legislação aplicável à espécie, o legislador, ao disciplinar a oitiva do colaborador pelo Juiz da causa, não se descuidou de proteger o princípio Constitucional do processo penal acusatório, pois ressalvou que o ato ocorrerá exclusivamente para aferir a regularidade, legalidade e voluntariedade do acordo.
Analisando com cuidado o §6º do Art. 4º da Lei 12.850/2013, se percebe que o legislador vedou ao Juiz participar das negociações da colaboração premiada. Já no §7º do mesmo dispositivo legal, se extrai que o termo de acordo, acompanhado das declarações do colaborador, serão remetidos ao Juiz para homologação, ou seja, se as declarações são colhidas em uma fase que a lei veda expressamente a participação do magistrado, por óbvio que o legislador objetivou impedir qualquer contato do julgador com a produção das provas, em manifesto respeito ao já citado princípio Constitucional acusatório.
Em outras palavras, o magistrado, ao ouvir o colaborador, deve restringir sua participação na aferição de eventual coação ou outra mácula a deslegitimar a homologação, jamais proceder ao interrogatório do colaborador sobre os fatos em apuração.
Nesse sentido, pertinente o escólio do Ministro Teori Zavaski, do Supremo Tribunal Federal, em informações no habeas corpus 127.483/PR, cuja relatoria ficou a cargo do Ministro Dias Toffoli:
“(…) o âmbito da cognição judicial na decisão que homologa o acordo de colaboração premiada é limitado ao juízo a respeito da higidez jurídica desse ato original. Não cabe ao Judiciário, nesse momento, examinar aspectos relacionados à conveniência ou à oportunidade do acordo celebrado ou as condições nele estabelecidas, muito menos investigar ou atestar a veracidade ou não dos fatos contidos em depoimentos prestados pelo colaborador ou das informações trazidas a respeito de delitos por ele revelados. É evidente, assim, que a homologação judicial do acordo não pressupõe e não contém, nem pode conter, juízo algum sobre a verdade dos fatos confessados ou delatados, ou mesmo sobre o grau de confiabilidade atribuível às declarações do colaborador, declarações essas às quais, isoladamente consideradas, a própria lei atribuiu escassa confiança e limitado valor probatório ("Nenhuma sentença condenatória será proferida com fundamento apenas nas declarações do agente colaborador", diz o § 16 do art. 4º da Lei 12.850/2013)”.
Sobre a negociação e oitiva do colaborador, Renato Brasileiro, a respeito da questão, aduz:
“O magistrado não deve presenciar ou participar das negociações, enfim, não deve assumir um papel de protagonista nas operações referentes ao acordo de colaboração premiada, sob pena de evidente violação do sistema acusatório (CF, art. 129, I). Ora, se o magistrado presenciar essa tratativa anterior à colaboração, na hipótese de o acusado confessar a prática do delito, mas deixar de prestar outras informações relevantes para a persecução penal, inviabilizando a celebração do acordo, é intuitivo que o magistrado não conseguirá descartar mentalmente os elementos de informações dos quais tomou conhecimento, o que poderia colocar em risco sua imparcialidade objetiva para julgamento da causa[6]”
Neste mesmo sentido: BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de dinheiro: aspectos penais e processuais penais – comentários à Lei 9.613/1998, com as alterações da Lei 12.683/12. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012. P 163.
Ora, se o Juiz é afastado da negociação justamente para não se contaminar pelo ato de investigação, por óbvio não deve colher as declarações, sendo que a lei é clara neste sentido, não havendo dúvida que postura diversa fere a imparcialidade, gera impedimento, sob pena de se ignorar a regra constitucional do princípio acusatório.
Exatamente por isso LUIZ FLÁVIO GOMES assenta que “o Juiz deverá ouvir o colaborador, sigilosamente, na presença do seu defensor, para o único fim de verificar a sua voluntariedade, de acordo com o §7º do Art. 4º da lei 12.850/2013”[7].
Portanto, a tomada das declarações ou interrogatórios pelo Juiz na audiência para homologação do acordo, na fase inquisitorial, viola diretamente a Constituição Federal [Art. 129 I e VIII], bem como a Lei 12.850/2013, aplicando-se, por isso, os Arts. 112 e 252 II do Código de Processo Penal, in verbis:
Art. 112. O juiz, o órgão do Ministério Público, os serventuários ou funcionários de justiça e os peritos ou intérpretes abster-se-ão de servir no processo, quando houver incompatibilidade ou impedimento legal, que declararão nos autos. Se não se der a abstenção, a incompatibilidade ou impedimento poderá ser argüido pelas partes, seguindo-se o processo estabelecido para a exceção de suspeição.
Art. 252. O juiz não poderá exercer jurisdição no processo em que: I – tiver funcionado seu cônjuge ou parente, consangüíneo ou afim, em linha reta ou colateral até o terceiro grau, inclusive, como defensor ou advogado, órgão do Ministério Público, autoridade policial, auxiliar da justiça ou perito; II – ele próprio houver desempenhado qualquer dessas funções ou servido como testemunha;
A lei adjetiva penal dispõe em seu Art. 112 que qualquer impedimento legal faz com que o Juiz deva se abster de funcionar no processo.
Já o Art. 252 II, utilizado por analogia, disciplina que o Juiz não deve exercer jurisdição quando já houver desempenhado a função de órgão do Ministério Público ou autoridade policial. Caso o Juiz, na audiência de oitiva do colaborador, interrogue-o exaustivamente sobre os fatos em apuração, estará buscando elemento probatório, exercendo atos típicos do Ministério Público e da autoridade policial, o que redunda, inevitavelmente, no impedimento e suspeição.
Em caso absolutamente análogo, onde o magistrado interrogou investigados em ato manifesto de investigação, assim decidiu o Superior Tribunal de Justiça:
PROCESSUAL PENAL. RECURSO EM HABEAS CORPUS. QUADRILHA. REALIZAÇÃO DE INTERROGATÓRIO POR JUIZ DURANTE A FASE INQUISITÓRIA, ANTES DO OFERECIMENTO DA DENÚNCIA. ARTIGO 2º, PARÁGRAFO 3º, DA LEI DE PRISÃO TEMPORÁRIA. AUSÊNCIA DE PROCEDIMENTO QUE PERMITA AO MAGISTRADO PROCEDER À INVESTIGAÇÃO PRELIMINAR. RETORNO AO SISTEMA INQUISITÓRIO. ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E GARANTIAS DO CIDADÃO. RECURSO PROVIDO.
1. Hipótese em que o Juiz, antes de haver, sequer, o oferecimento da denúncia, estando ainda no curso da investigação preliminar, se imiscuir nas atividades da polícia judiciária e realizar o interrogatório do réu, utilizando como fundamento o artigo 2º, § 3º, da Lei 7.960/1989.
2. A lei da prisão temporária permite ao magistrado, de ofício, em relação ao preso, determinar que ele lhe seja apresentado e submetê-lo a exame de corpo de delito. Em relação à autoridade policial o Juiz pode solicitar informações e esclarecimentos.
3. A Lei 7.960/1989 não disciplinou procedimento em que o Juiz pode, como inquisidor, interrogar o réu.
4. O magistrado que pratica atos típicos da polícia judiciária torna-se impedido para proceder ao julgamento e processamento da ação penal, eis que perdeu, com a prática dos atos investigatórios, a imparcialidade necessária ao exercício da atividade jurisdicional.
5. O sistema acusatório regido pelo princípio dispositivo e
contemplado pela Constituição da República de 1988 diferencia-se do sistema inquisitório porque nesse a gestão da prova pertence ao Juiz e naquele às partes.
6. No Estado Democrático de Direito, as garantias processuais de julgamento por Juízo imparcial, obediência ao contraditório e à ampla defesa são indispensáveis à efetivação dos direitos fundamentais do homem. 7. Recurso provido.
[STJ, RHC 23.945/RJ; rel. Min. Jane Silva, convocada]
Outra decisão do STJ em igual sentido:
HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. MAGISTRADO. ATUAÇÃO NA FASE INVESTIGATÓRIA. IMPEDIMENTO PARA ATUAR EM QUALQUER AÇÃO PENAL DECORRENTE DESSA INVESTIGAÇÃO. REALIZAÇÃO DE ATOS INVESTIGATÓRIOS PELO JUIZ. REQUISIÇÃO DE INSTAURAÇÃO DE AUDITORIA. ILEGALIDADE. AFRONTA AO SISTEMA ACUSATÓRIO. NATUREZA OBJETIVA DA NULIDADE. ART. 580 DO CPP. EXTENSÃO AOS CORRÉUS.
1. O impedimento do magistrado decorrente de sua ativa participação na fase investigatória, inclusive com a realização de interrogatórios e requisição de realização de auditoria no âmbito da Receita Federal, tem natureza objetiva e veda sua atuação em qualquer ação penal que tenha origem nesse procedimento. […] 4. Afronta ao sistema acusatório caracterizada. 5. Diante da natureza objetiva do impedimento e do fato gerador da ilegalidade das provas produzidas pelo magistrado na fase investigatória, os efeitos da declaração de nulidade devem ser estendidos aos demais corréus, nos termos do art. 580 do Código de Processo Penal. 6. Ordem concedida para reconhecer o impedimento do Juiz Federal Lafredo Lisbôa Vieira Lopes e, em consequência, anular a Ação Penal n. 2007.51.01.806888-5, em trâmite na 3ª Vara Federal Criminal da Seção Judiciária do Rio de Janeiro, desde o oferecimento da denúncia, bem como para determinar o desentranhamento do Relatório n. 8 da Auditoria Correicional da Corregedoria-Geral da Receita Federal e dos demais atos investigatórios realizados pelo referido magistrado, inclusive os interrogatórios, de forma que não possam ser utilizados para embasar a nova peça acusatória, com extensão dos efeitos aos demais corréus, nos termos do art. 580 do Código de Processo Penal.
[STJ, HC 162.970/RJ; Rel. Min. Sebastião Reis]
Corroborando o sustentado, Aury Lopes Jr. destaca:
Em última análise, é a separação de funções e, por decorrência, a gestão da prova nas mãos das partes e não do juiz (juiz-espectador), que cria as condições de possiblidade para que a imparcialidade se efetive. Somente no processo acusatório-democrático, em que o juiz se mantém afastado da esfera de atividade das partes, é que podemos ter a figura do juiz imparcial, fundante da própria estrutura processual.[8]
Portanto, o Juiz, na audiência de oitiva do colaborador para fim de homologação do acordo, deve se pautar estritamente na busca de elementos a desvelar eventual violação à legalidade, regularidade e voluntariedade do ajuste, jamais partindo para a colheita de declarações sobe os fatos em apuração, sob pena de ficar impedido de atuar na ação penal respectiva e de ver anulados os atos praticados a partir do ato.
Ulysses Rabaneda – Advogado criminalista, especialista em Ciências Criminais, pós-graduando em Processo Penal pela Universidade de Coimbra/PT, foi Presidente da Escola Superior de Advocacia de Mato Grosso e atualmente é diretor Secretário-Geral Adjunto da OAB/MT.
[2] “A colaboração premiada, por expressa determinação legal (art. 3º, I da Lei nº 12.850/13), é um meio de obtenção de prova […]” [STF; habeas corpus 127.483/PR; Rel. Min. Dias Toffoli].
[3] STF, HC 82.507, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 19.12.2002: “STF: […]. 2. A remessa do inquérito policial em curso ao tribunal competente para a eventual ação penal e sua imediata distribuição a um relator não faz deste "autoridade investigadora", mas apenas lhe comete as funções, jurisdicionais ou não, ordinariamente conferidas ao juiz de primeiro grau, na fase pré- processual das investigações. III. Ministério Público: iniciativa privativa da ação penal, da qual decorrem (1) a irrecusabilidade do pedido de arquivamento de inquérito policial fundado na falta de base empírica para a denúncia, quando formulado pelo Procurador-Geral ou por Subprocurador-Geral a quem delegada, nos termos da lei, a atuação no caso e também (2) por imperativo do princípio acusatório, a impossibilidade de o juiz determinar de ofício novas diligências de investigação no inquérito cujo arquivamento é requerido”.
[4] STF, ADI 1570, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ 22.10.2004: “[…] 2. Busca e apreensão de documentos relacionados ao pedido de quebra de sigilo realizadas pessoalmente pelo magistrado. Comprometimento do princípio da imparcialidade e consequente violação ao devido processo legal. 3. Funções de investigador e inquisidor. Atribuições conferidas ao Ministério Público e às Polícias Federal e Civil (CF, artigo 129, I e VIII e § 2o; e 144, § 1o, I e IV, e § 4o). A realização de inquérito é função que a Constituição reserva à polícia. Precedentes. Ação julgada procedente, em parte”.
[5] Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:
I – promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei;
VIII – requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, indicados os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais;
[6] LIMA, Renato Brasileiro. Manual de Processo Penal; 3ª Ed. Bahia: Editora JusPODIVM, 2015. P. 785/786.
[7] GOMES, Luiz Flávio; Organizações Criminosas e Técnicas Especiais de Investigação.
[8] LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal.12. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 44.