Praticado o crime, o direito de punir do Estado torna-se concreto. A persecução penal estatal ocorre em duas fases, quais sejam: extrajudicial, em regra, pela via de inquérito policial no âmbito da Polícia Civil; e judicial, em sede de processo criminal na esfera do Poder Judiciário.
Em ambas as instâncias de apuração do crime, há reunião de elementos com a finalidade de demonstrar a materialidade, a autoria e a participação delitivas, com a reconstrução histórica do fato criminoso, para, assim, aplicar o direito.
Em corolário, o ordenamento jurídico não faz qualquer distinção do falso testemunho praticado na fase extrajudicial daquele havido na fase judicial. Ainda, a atenuante da confissão tem incidência mesmo que tenha ocorrida apenas na primeira fase da persecução criminal. Logo, não é difícil concluir que o Estado zela pela idoneidade da colheita da prova em todas as fases de apuração do delito.
Edmond Locard ensinou que “o tempo que passa é a verdade que foge”. Por isso, no que concerne à valoração das provas, avulta com destacada importância o “depoimento em bruto”, que é aquele colhido logo após o crime, no calor dos acontecimentos, em que as testemunhas demonstram o que de fato viram, ouviram e sentiram.
A experiência confirma que, com o passar do tempo, surgem, entre outras coisas, esquecimento, coação psicológica ou física, sugestão de terceiras pessoas, autossugestão, doença, temor ou morte, que podem anuviar a verdade fática.
Não por outra razão que é comum presenciar, quando da colheita da prova oral no âmbito do Poder Judiciário, a mudança de depoimento, que, paradoxalmente, na fase de investigação criminal, fora prestado com riqueza de detalhes e, por isso, dotado de grande carga de verossimilhança e credibilidade.
Daí a importância também dos elementos probatórios reunidos na primeira fase da persecução penal estatal para a busca da verdade real. É fora de dúvida que o convencimento acerca da culpa criminal depende da análise do conjunto de provas colhido em ambas as fases persecutórias.
Todavia, o Anteprojeto do Código de Processo Penal, já aprovado no Senado Federal e agora em trâmite na Câmara dos Deputados, consubstanciado no PL 8045/2010, dentre outras vedações, proíbe, no Tribunal do Júri, que as partes façam menção às provas colhidas na fase de investigação criminal.
É o que diz o artigo 391: “Durante os debates as partes não poderão, sob pena de nulidade, fazer referências: I – Aos fundamentos das decisões de pronúncia ou das decisões posteriores que jugaram admissível a acusação e aos motivos determinantes do uso de algemas como argumento de autoridade que beneficiem ou prejudiquem o acusado; II – ao silêncio do acusado ou à ausência de interrogatório por falta de requerimento em seu prejuízo; III – aos depoimentos prestados na fase de investigação criminal, ressalvada a prova antecipada.
Essa proibição dá um xeque-mate na verdade. Pode fazer do círculo um quadrado. É flagrantemente inconstitucional.
Ora, qualquer um que lida no foro criminal sabe muito bem que, não raro, testemunhas escamoteiam em juízo a verdade dita na fase de investigação criminal.
No Tribunal do Júri, espaço em que impera a democracia no Poder Judiciário, é inadmissível que estabeleçam vedações legislativas ao direito de argumentar das partes e impeçam que o Conselho de Sentença tenha acesso à investigação criminal e ao conteúdo processual.
Esse artigo 391 do PL 8045/2010 protege os assassinos, amarra as mãos da verdade, aniquila o bom senso e sequestra a justiça.
Basta ler esse dispositivo para perceber imediatamente que ele agirá contra a razão, a lógica, o bom senso, a paz social e ao direito fundamental à vida, em detrimento da proteção da sociedade.
É de vital importância pôr às claras que a consequência de sua aprovação mais que previsível é esta: a impunidade!
Por outras palavras, é seguro dizer que diante de uma prova coesa e verossímil residente na investigação criminal, basta que as testemunhas se retratem em juízo, mudem de endereço para local incerto ou – numa visão pessimista, mas plenamente possível, frente à atuação de organizações criminosas – que haja suas execuções antes do depoimento judicial para que o assassino alcance, tranquilamente, a impunidade.
Salta à vista que, na verdade, essa pretensa inovação jurídica é um perfeito estelionato legislativo, cujos principais lobistas são os especialistas em defender culpados no Tribunal do Júri.
Eliminar a possibilidade de exposição dos elementos probatórios colhidos na fase de investigação criminal pelas partes – principalmente, pelo Ministério Público – em plenário do Tribunal do Júri é dar força a quem não deve tê-la – o assassino, subtraindo-se da proteção quem dela necessita – a sociedade.
Resta, pois, evidenciado que não é difícil reconhecer que essa vedação conduz à hipertrofia do braço do crime, ao passo que a sociedade, já prostrada e sem defesa, mais enfraquecida ficará.
Assim postas as coisas, isso conduz inexoravelmente a seguinte conclusão: o artigo 391 deve ser banido o quanto antes, ainda em seu nascedouro, do Anteprojeto do Código de Processo Penal, em homenagem à verdade real, à democracia, à liberdade de expressão e, principalmente, em proteção da vida e da sociedade.
Se assim não for, haverá, sem qualquer fiapo de dúvida, o recrudescimento do crime e da impunidade, em prejuízo da própria coesão social.
César Danilo Ribeiro de Novais, Promotor de Justiça em Mato Grosso, Presidente da Confraria do Júri (Associação dos Promotores do Júri) e Editor do blogue Promotor de Justiça.