sexta-feira, 19/abril/2024
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Cuspir

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Ontem, na minha caminhada diária por uma rua ensombrada de Copacabana, o jovem que ía à minha frente cuspiu na calçada. Desviei para não pisar em cima. Faria tão mal para o solado de meus tênis, quanto me fez mal assistir àquela nojeira. Fiquei imaginando o que um civilizado, que viesse para a Olimpíada, faria ao ver aquilo. Na China, onde há o costume de cuspir, o governo fez uma grande campanha contra o mau hábito, que passou a ser punido com multa, para não causar má impressão aos visitantes dos jogos de 2008. Em 2012, nas Olimpíadas na Inglaterra, em muitos lugares cuspir no chão dá multa. Em Singapura, a lei contra o cuspe é rigorosa: é crime que dá multa altíssima; a repetição resulta em multa mais alta e trabalhos forçados na limpeza urbana e, por fim, mais reincidência dá cadeia.

Poucos exemplares do reino animal têm a capacidade de cuspir. A lhama, da região andina, é um desses animais. É preciso ter cuidado para não levar uma cuspidela. O camelo, da mesma família da lhama, também cospe, mas apenas para se livrar da saliva de gosto ruim. A lhama usa o cuspe para se defender, para atacar e para marcar território. Entre os primatas, já vi um chimpanzé no zoológico que enchia a boca de água para esguichar o líquido nos curiosos que põem o rosto muito próximo das grades de sua jaula. Entre os primatas, ultimamente, vi um deputado e um ator cuspirem como modo de expressão.

A diferença de expressão entre um primata símio e um do gênero humano, é que numa discussão o humano usa a boca para articular palavras geradas no cérebro. O humano levou 40 mil anos para chegar ao estágio atual. A civilização e a palavra andam juntas. Os gregos, há 3 mil anos, se reuniam na praça – a ágora – para trocar idéias. Todos sabemos que numa discussão, só usamos adjetivos quando já não temos argumentos, quando acabam os substantivos para defender e sustentar nosso ponto-de-vista. Sem a substância dos substantivos, Aí, partimos para ofender, apenas, o nosso adversário – ou a mãe dele, o que mostra a nossa fraqueza. Os romanos antigos chamavam isso de ad hominem – quando já não temos argumentos para contrapor aos do nosso interlocutor, tratamos de destruir o autor dos argumentos mais fortes que os nossos. E quando já não temos mais nada, nem substantivos, nem adjetivos, nem ideias, deixamos de articular palavras para expelir o cuspe, confissão da nossa mais humilhante derrota.

Na Bíblia, cuspir no rosto de alguém é uma ofensa grave, punida com lepra. No Novo Testamento, Jesus levou cusparadas até a cruz. Na sabedoria popular, há a expressão “cuspiu no prato em que comeu”. Foi o caso de muitos dos nossos representantes, que comeram até se lambuzar, no transbordante prato de benesses com dinheiro público. Depois, insaciados, percebendo que se esgotaram as reservas que enchiam os pratos, cuspiram no prato já esvaziado de poder. A saliva gasta em palavras mentirosas ou em cusparadas simiescas ofende a razão, a lógica, a inteligência. E tira o respeito de seus pobres autores.

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